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A posição dos Tribunais após um ano de vigência do CPC/2015: O art. 334 do CPC/2015: a realização da audiência inicial de tentativa de mediação ou conciliação é obrigatória ou pode ser dispensada pelo juiz?

Por: Suzana Cremasco
Doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra em processo de co-tutela com a Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Processual Civil pela UFMG. Professora da Faculdade de Direito Milton Campos. Secretária Adjunta do IBDP - Instituto Brasileiro de Direito Processual para Minas Gerais. Advogada.


A criação de um sistema multiportas de tratamento de conflitos – fundado especialmente na valorização de métodos consensuais de solução de controvérsias como a mediação e a conciliação – é uma das grandes marcas do Código de Processo Civil de 2015, que vem registrada desde o texto primitivo do Anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal n.º 379, de 30 de setembro de 2009.

A opção[1] teve por escopo “converter o processo em instrumento incluído no contexto social em que produzirá efeito o seu resultado”, a partir da ideia – frise-se, acertada – de que “a satisfação efetiva das partes pode dar-se de modo mais intenso se a solução é por elas criada e não imposta pelo juiz”.

O dever do Estado de promover a solução de conflitos de forma consensual, sempre que possível, assim como o dever de juízes, advogados, Defensores Públicos e membros do Ministério Público estimularem o uso da mediação, da conciliação e de outros métodos de solução consensual de conflitos – como a negociação direta, por exemplo –, inclusive no curso do processo judicial, foram inseridos entre as normas fundamentais do novo processo civil brasileiro, respectivamente no art. 3º, parágrafos 2º e 3º.

Para que não se corresse o risco de que a referida previsão se tornasse norma programática sem aplicação imediata efetiva, junto com ela, o legislador cuidou, sob a perspectiva estrutural, de regulamentar as figuras do mediador e do conciliador judicial como auxiliares da justiça (art. 149) e previu a criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos, “responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação, e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição” (art. 165). Sob a perspectiva procedimental, por sua vez, promoveu uma mudança significativa na dinâmica do procedimento comum, de modo a fazer com que o primeiro grande ato do processo não mais fosse a citação do réu para responder à pretensão do autor mas passasse a ser, como regra, a citação desse para comparecer a uma audiência inicial de tentativa de conciliação ou de mediação, de responsabilidade do CEJUSC, postergando a apresentação de defesa – e, por conseguinte, a instalação do ambiente adversarial de solução de conflitos – apenas para quando o acordo não fosse alcançado (art. 335, I).

Diz-se como regra porque isso é o que está expresso na Exposição de Motivos do Anteprojeto[2] e, ainda, o que decorreria do texto literal do art. 334, caput[3], e, sobretudo, da previsão constante do parágrafo 4º do mesmo dispositivo, por força da qual a audiência inicial apenas não se realizaria quando ambas as partes manifestassem, expressamente, desinteresse na composição consensual – o autor, na sua petição inicial e o réu mediante petição simples em até 10 dias antes da audiência (art. 334, parágrafo 5º). Acima de tudo, isso é o que naturalmente se esperaria dentro de um contexto de estímulo à utilização de métodos consensuais, de implantação um sistema de justiça multiportas e de criação de uma cultura de tratamento adequado de conflitos.

Não obstante, ainda durante a tramitação do Projeto no Congresso Nacional – e, especialmente, após a entrada em vigor do novo texto legislativo – a doutrina consolidou dois posicionamentos fundamentais diametralmente opostos: de um lado, aqueles[4] que sustentam que, sim, a audiência seria obrigatória e, como tal, poderia ser dispensada apenas nos casos expressamente previstos no parágrafo 4º do art. 334, considerando o espírito trazido pela nova codificação e o texto expresso de lei; de outro, aqueles que consideram que a audiência não seria obrigatória, porquanto a obrigatoriedade contrariaria a voluntariedade que é inerente aos sistemas consensuais (e não judiciários) de solução de conflitos[5] e, ainda, poderia vir de encontro à celeridade do processo, que além de ser uma garantia constitucional fundamental (art. 5º, LXXVIII, CF), também está consagrada nas normas fundamentais do NCPC (arts. 4º e 6º).

Diante disso, a dúvida era saber como os Tribunais se comportariam a partir da entrada em vigor do Código, especialmente frente a inexistência de enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) e do Fórum Nacional de Mediação e Conciliação (FONAMEC) a esse respeito e, ainda, considerando o Enunciado n.º 62 editado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), que muito embora tenha como objeto principal a eventual justificativa para a não aplicação da multa do art. 334, parágrafo 8º, do NCPC, por vias transversas, toca o tema da dispensa da audiência, ao dizer que “somente a recusa expressa de ambas as partes impedirá a realização da audiência de conciliação ou mediação prevista no art. 334 do CPC/2015, não sendo a manifestação de desinteresse externada por uma das partes justificativa para afastar a multa de que trata o art. 334, § 8º”. De acordo com o enunciado, portanto, o afastamento da multa estaria condicionado à hipótese expressa do art. 334, I, e, consequentemente, não havendo manifestação expressa de ambas as partes em sentido contrário, a audiência deveria ser realizada.

Passado pouco mais de um ano da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, o tema da obrigatoriedade da realização da audiência inicial de tentativa de mediação ou de conciliação ainda não chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que, portanto, não se manifestou a respeito da questão. À vista das hipóteses de cabimento de agravo de instrumento contra decisão interlocutória previstas no rol do art. 1015 e, ainda, da regra de eficácia das normas processuais consubstanciada no art. 14, é mais provável que a manifestação da Corte Superior ocorra quando do eventual julgamento de recurso especial interposto contra acórdão que promover o julgamento de apelação aviada contra sentença em procedimento comum cuja citação tenha sido determinada posteriormente à entrada em vigor do novo texto, no qual se pretenda sustentar uma eventual (embora improvável) nulidade do procedimento.

A despeito disso, alguns dos principais tribunais estaduais[6] do país já tiveram a oportunidade de decidir a respeito do tema. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais[7] admitiu o agravo de instrumento versando sobre a matéria, mas entendeu que não haveria ilegalidade na dispensa da audiência, quando o julgador apresentar “fundamentos sólidos para tanto”, considerando, ainda, que seria possível designar a audiência no futuro, “caso haja interesse das partes”. No caso, o juiz de 1º grau dispensou a audiência sob alegação de que a regra do art. 334 “vai de encontro aos princípios da eficiência e da celeridade processual”, além de levar em consideração, também, “a dificuldade de citação da parte ré”.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, em decisão recente proferida em julgamento de recurso de apelação[8], afastou a ofensa ao art. 334 alegada em função de dispensa de audiência, frente a ausência de manifestação expressa das partes pela sua realização, em que pese, como já dito, a exigência legal para a dispensa constante no inciso IIdo parágrafo 4º seja a manifestação expressa das partes de desinteresse na audiência, prestigiando, portanto a sua realização no silêncio de autor e réu.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[9], a seu turno, rejeitou a possibilidade de que a decisão que dispensa a audiência seja atacada por meio de agravo de instrumento, por não estar inserida no rol do art. 1015, e, igualmente, rejeitou a possibilidade de que ela venha a ser objeto de mandado de segurança, assentando expressamente que a decisão monocrática “não se reveste de caráter manifestamente ilegal, abusivo ou teratológico” e que a admissão do mandado de segurança “desvirtuaria por completo o objetivo do Novo CPC, qual seja, a redução das hipóteses de recorribilidade em face de decisão interlocutória”. O Tribunal tem decisão, porém, que reconhece textualmente que “a audiência de conciliação somente não se realizará se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual”[10].

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina igualmente repele a possibilidade de interposição de agravo de instrumento versando sobre a questão, sem, contudo, se posicionar acerca da legalidade ou não da dispensa da audiência inicial[11]. E Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios tem decisão que reconhece que a realização da audiência inicial não seria obrigatória quando for o caso de julgamento antecipado da lide ou de improvável obtenção da conciliação[12].

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por fim, destoa dos demais tribunais pesquisados, na medida em que tem algumas decisões[13] que reformaram decisão monocrática de dispensa da audiência, entendendo que é imperativa a designação de audiência pelo juízo a quo nas hipóteses em que a petição inicial é apta e não há improcedência liminar do pedido. Não obstante a pesquisa tenha localizado decisão minoritária[14] que afasta a nulidade do procedimento frente à inobservância do art. 334, invocando para tanto a previsão do art. 139, V e, por conseguinte, a possibilidade de que o magistrado tente compor às partes a qualquer momento e, ainda, o enunciado n.º 35 da ENFAM, que trata acerca da flexibilização procedimental pelo juiz.

De todo modo, o que se percebe a partir do cenário pesquisado é que a orientação majoritária encontrada nos tribunais Brasil afora vai ao encontro do que já havia sido noticiado pelo Portal G1 em reportagem veiculada em agosto de 2016[15], contendo o resultado de análise de despachos em primeira instância em São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Santa Catarina, além do Distrito Federal, que indicavam motivos como a inconstitucionalidade da previsão do art. 334, a ofensa ao princípio da razoável duração do processo, a ausência de manifestação do autor de vontade de conciliar, a possibilidade de que a conciliação possa ser tentada em outro momento, além da falta de estrutura para justificar a não designação da audiência inicial e, por conseguinte, a possibilidade de sua dispensa pelo magistrado.

Isso nos coloca diante de uma reflexão necessária sobre os caminhos que deverão ser adotados a partir de então para que a previsão do art. 334, cujo intuito é dos mais nobres e quando aplicada corretamente produz resultados efetivos[16], em pouco tempo, não culmine por se transformar em letra morta na disciplina processual.

[1] A propósito, cf.: Exposição de Motivos do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, p. 22, disponível em: https://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf.. Acesso em 29/04/2017.

[2] Na qual se lê: “Como regra, deve realizar-se audiência em que, ainda antes de ser apresentada contestação, se tentará fazer com que autor e réu cheguem a acordo. Dessa audiência, poderão participar conciliador e mediador e o réu deve comparecer, sob pena de se qualificar sua ausência injustificada como ato atentatório à dignidade da justiça. Não se chegando a acordo, terá início o prazo para a contestação” (Exposição cit., p. 23, grifamos).

[3] Cujo texto emprega o verbo designar de forma imperativa, apresentando a marcação da audiência como um dever do magistrado nos seguintes termos: “Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designaráaudiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência” (grifamos).

[4] Nesse sentido, cf.: THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil, v. 1, 58. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 803, n. 588; ARAÚJO, Mayara de Carvalho. O novo regramento da autocomposição de conflitos, n. 3. In: THEODORO JR., Humberto; JAYME, Fernando Gonzaga; GONCALVES, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves; FARIA, Juliana Cordeiro de; FRANCO, Marcelo Veiga; ARAÚJO, Mayara de Carvalho; CREMASCO, Suzana Santi. (Org.). Processo Civil Brasileiro: Novos Rumos a partir do CPC/2015. 1. Ed. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2016; LESSA NETO, João Luiz. Comentários ao art. 334. In: STRECK, Lênio Luiz; CUNHA, Leonardo José Carneiro; NUNES, Dierle José Coelho (org); FREIRE, Alexandre Freire (coord). Comentários ao Código de Processo Civil, 1ed, São Paulo: Saraiva, 2016, p. 484.

[5] Nesse sentido, cf: MARCATO, Ana Cândida Menezes. Audiência de conciliação ou mediação do art. 334 do NCPC: facultativa ou obrigatória? Afronta à voluntariedade da mediação?”. In: CIANCI, Mirna; DELFINO, Lúcio; DANTAS, Bruno; DIDIER JR., Fredie, CUNHA, Leonardo Carneiro da.; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe; REDONDO, Bruno Garcia. Novo Código de Processo Civil, Impactos na Legislação Extravagante e Interdisciplinar, v. 1, p. 41-49, São Paulo, Saraiva, 2015.

[6] Os Tribunais de Justiça do Espírito Santo, do Paraná e da Bahia, em que pese pesquisados, não retornaram decisões com os parâmetros de busca utilizados. O sistema de pesquisa do Tribunal de Justiça de Pernambuco estava indisponível quando da consulta realizada.

[7] TJMG - Agravo de Instrumento n.º 1.0000.16.053504-3/001, Relator: Des. Márcio Idalmo Santos Miranda, 9ª Câmara Cível, j. 18/10/2016, p. 25/10/2016.

[8] TJSP - Apelação n.º 1028773-76.2016.8.26.0002 - Relator: Des. Kenarik Boujikian, 34ª Câmara de Direito Privado; j. 19/04/2017; p. 19/04/2017

[9] TJRS - Agravo (Interno) nº 70072556640, Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos, 8ª Câmara Cível, j. 09/03/2017. No mesmo sentido, também: TJRS, Agravo (Interno) nº 70070827613, 9ª Câmara Cível, Relator Des. Miguel Ângelo da Silva, j. 19/10/2016.

[10] TJRS, Agravo de Instrumento nº 70072501646, 7ª Câmara Cível, Relator: Des. Sandra Brisolara Medeiros, j. 29/03/2017.

[11] Nesse sentido: TJSC, Agravo de Instrumento n.º 0032877-91.2016.8.24.0000, Relator: Des. Henry Petry Junior, j. 05-09-2016 e TJSC, Agravo de Instrumento n.º 4007061-39.2016.8.24.0000, Relator: Des. Cláudio Barreto Dutra, j. 01-12-2016.

[12] TJDFT, Apelação Cível n.º 20161210013366, 8ª Turma Cível, Relator Des. Diaulas Costa Ribeiro, j. 23/03/2017. No mesmo sentido, também, o entendimento da 7ª Turma Cível no julgamento da Apelação Cível n.º 20160710112162, Relatora Des. Gislene Pinheiro, j. 01/02/2017.

[13] TJRJ, Agravo de Instrumento n.º 0005840-93.2017.8.19.0000, 15ª Câmara Cível, Relatora: Des. Maria Regina Fonseca Alves, j. 23/02/2017. O mesmo entendimento é preconizado pela 20ª Câmara Cível, no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 0054408-77.2016.8.19.0000, de Relatoria da Des. Conceição Aparecida de Guimarães Pena, j. 22/02/2017 e, ainda, pela 23ª Câmara Cível, no julgamento da Apelação n.º 0011053-87.2016.8.19.0203, de Relatoria do Des. Celso Silva Filho, j. 08/02/2017, no qual se reconhece a nulidade da sentença por error in procedendo, frente a não designação da audiência.

[14] TJRJ, Embargos de Declaração no Agravo de Instrumento nº 0053176-30.2016.8.19.0000, 22ª Câmara Cível, Relator: Rogerio de Oliveira Souza, j. 07/03/2017.

[15] A propósito, cf.: Juízes ignoram fase de conciliação e descumprem novo código, Portal G1, 15/08/2016, disponível em: http://g1.globo.com/política/noticia/2016/08/juizes-ignoram-fase-de-conciliacaoedescumprem-novo-código.html. Acesso em 29/04/2017.

[16] Nesse sentido, vale destacar o exemplo da 1ª Vara Cível da Comarca de Vitória, que tem como juíza titular a Profa. Dra. Trícia Navarro Xavier Cabral, que em levantamento realizado no primeiro ano de vigência do NCPC constatou um aumento de 600% no número de acordos homologados. De fato, o número de processos encerrados por acordo saltou de 27, entre março de 2015 e fevereiro de 2016, para 162, entre março de 2016 e fevereiro de 2017. E em que pese nem todos esses acordos tenham sido realizados na audiência inicial, não há como não se reconhecer a importância da ferramenta, que não pode ser, simplesmente, descartada como tem ocorrido. A propósito dos resultados da 1ª Vara Cível de Vitória, cf.: http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/84469-conciliacoes-aumentam-em-vitoria-es-apos-novo-cpc. Acesso em 1º/5/2017.
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